quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

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Trecho do livro "Bento" de André Vianco

    Olá Leitores!
    Esse é só um trecho do livro "Bento" de André Vianco que realmente me deixou sem palavras, sem fôlego, a prova de que o produto nacional tem valor, e muito valor. É uma das melhores cenas de embate que eu já li, é um épico. Leiam e digam que eu estou errada.



    Bento
    "Elton fechou os olhos por um segundo, querendo evocar as sensações daquela madrugada, reavivando a memória. Não precisou esforçar-se demais. Logo voltou a sentir seu corpo balançando sobre o torço do cavalo, a garoa fria sendo jogada pelo vento contra seu rosto e acumulando-se em seu queixo, onde a barba descuidada teimava crescer. O peso do rifle preso à suas costas, o barulho dos outros cavalos vencendo o lamaçal, tudo isso, vinha vivo, recolocando-o lá, no mesmo tempo e espaço. Grandes corujas com olhos brilhantes girando as cabeças empoleiradas em galhos antigos e livres de folhas. O céu fechado e cheio de nuvens sendo carregadas velozmente pelo vendaval acima de suas cabeças. O lugar perfeito para ser morto por aqueles demônios do mundo. Odiava as histórias de pântanos. Quantos soldados haviam caído em cenários semelhantes? Mais do que as histórias, odiava estar ali. Mas, estavam seguindo o "escolhido". Estavam colados no rabo do trigésimo bento, que lhe parecera, à primeira vista, um magricela perdido, com medo da cauda do cavalo, um sem sal. Impossível acreditar que, em poucos dias, um sujeito que parecia um banana, realmente transformara-se num herói. Mais do que um herói. Lucas transformara-se num líder. Um herói pode ser simplesmente um cara, dentro de uma única situação, que de repente, queima num ímpeto impensado de coragem, burrice e reflexo e,shazam, salva a velha gorda, a garota do sexto andar, o menino na frente do carro e a bosta do gatinho na merda da árvore. Pronto! Ele é o herói. Um gato Félix da vida. Lucas estava quilômetros longe daquilo. Deus do Céu! Poucos dias e quilômetros longe de ser um simples herói. Elton lembrava de ter notado, antes da baderna começar, Lucas conduzindo, garbosamente, o grupo. Tinha urgência. Tinha ordenado que continuassem. Que precisavam reunir os trinta bentos. Mesmo com os seis corpos enterrados no limite do pântano anterior, continuava obstinado, continuava perseguindo cegamente o que Bispo lhe pedira. Iria reunir os trinta bentos. Não dissera como ressuscitaria os mortos, mas dizia que conseguiria cumprir o pedido. Elton notara algo mais importante que isso. Os homens seguiam Lucas. Bento Vicente, o mais marrudo e indigesto bento que cruzara o caminho, parecia enfeitiçado. Ele, que demonstrara claramente seu desapontamento e sua antipatia para com o novato, parecia agora sua sombra, seu cão de guarda. Resignado e valente, cavalgava ao lado de Lucas. Os homens acreditavam no trigésimo. Estavam dispostos a cruzar outro pântano durante a noite, pela segunda vez, arriscando, literalmente, seus pescoços. E qual seria o pagamento por aquele com-prometimento voluntário? O que esperavam? Esperavam o fim do medo. Era esse o prêmio de ouro por guardar a trilha de Lucas e garantir que o magricela transformado realizasse seu intento. Por isso, talvez, uma dose extra de risco e terror valesse o preço. Os quatro milagres. Os milagres não revelados. O que seriam? As quatro armas com as quais acabariam com o medo. Acabariam com os vampiros. Acabariam com as sombras, Fariam voltar o medo tolo do bicho-papão, do homem do saco, do papa-figo. Medos de crianças. Medos que não avançavam com a mandíbula arreganhada, cheias de agulhas pontiagudas, doidas para estraçalhar nossas artérias e sugar seu sangue. Os milagres trazidos nas vísceras do trigésimo bento baniriam o medo das bestas da noite. Fariam sobrar apenas os medos de criança.

     O líder dos soldados de São Pedro começou o relato. Mesmo sabendo que não era necessário, lembrou aos ouvintes os detalhes. A garoa, os cavalos afundando na lama e na água, deixando os cavaleiros com a água roçando os pés, ora chegando a passar das canelas. Como crianças ao redor do vovô, os homens não deram um pio, acompanhando o "causo". Os cavalos tinham alcançado um platô mais sólido, feito um banco de areia. A maioria dos cavaleiros en-contrava-se nesse ponto quando deram conta da aproximação das criaturas. Olhos vermelhos dançando nos galhos. Vultos voando no meio das árvores. Boa parte delas secas e galhadas, balançando ao sabor do vento ou cedendo ao peso das criaturas. Elton chegou a arrepiar-se ao lembrar da cena mais dantesca. Vários dos vampiros surgindo da água, como cadáveres voltando à vida, sombras negras emergindo. Foram cercados num instante. Os bentos sendo tomados pela loucura, não hesitariam em atacar, não poupariam suas espadas. A tensão aumentando como o número de sombras ao redor. Logo, não existia mais pântano à vista. Não existiam mais árvores vazias. Eram centenas. Noturnos vindos de um túnel com ligação direta com o inferno. Grunhiam e praguejavam. Juntavam-se mais e mais. Um ataque perigoso, como nunca visto por aqueles seres humanos. Lucas saltou do cavalo, sua armadura encoberta pela manta marrom, a cabeça coberta pelo capuz. Os bentos sentindo o suor descendo pela testa. Seis deles já estavam mortos e enterrados e agora os vampiros pareciam prestes a aumentar esse placar. Pedras começaram a ser lançadas contra os soldados. Até aí todos recordavam. Foi nesse momento, enquanto Lucas gritava as primeiras e impressionantes ordens, que Carlos tombara, vítima de uma pedrada certeira na cabeça. Em seguida lanças zuniram, fazendo novas vítimas. Lucas gritava com os bentos. Ordenava que ficassem imóveis. Ordenava que não atacassem. A loucura patente daqueles homens valentes parecia arrefecer com os brados do trigésimo escolhido. A liderança de Lucas revelou-se mais poderosa do que supunham até então. Seguindo seu comando, espantosamente, os bentos abandonaram a loucura c não se atiraram contra o exército de bestas no primeiro instante. Lucas, usando os cavalos, providenciou um círculo, formando uma proteção precária. Estavam cercados pelas brasas rubras, que valsavam ao redor. Os malditos gritavam enquanto mais pedras choviam. Pareciam farejar no ar a presença dos bentos e, por essa razão, deveriam ter hesitado um instante para caírem de uma vez em cima dos soldados. Outro arrepio percorreu o corpo de Elton quando se lembrou dos olhos de Lucas. Duas bolas amarelas acesas na noite. Era estranho. Era diferente. Era mágico.
     Lucas, sozinho, havia rompido o círculo, atraindo a atenção dos vampiros. Algum dos malditos deve ter dado a ordem. Todos cessaram o ataque. Um silêncio medonho cresceu. Dentrodo círculo de cavalos, os soldados ajudavam os desacordados, vítimas das pedradas na cabeça e das lanças a manterem-se temporariamente à salvo. O medo exalava do grupo, alimentando a massa inimiga. O sangue, que pingava no banco de areia, devia atiçar ainda mais a gana por morte.

     - Entreguem os bentos, soldados! — berrou uma voz rouca, do meio dos vampiros.
     Lucas procurou os olhos do interlocutor. Caminhou lentamente, deixando o banco de areia, até que a água chegasse aos seus joelhos.
     - Entreguem os bentos e serão libertados!
     Lucas desembainhou a espada, fazendo o metal prateado retinir.
     -  Há! Há! Há! Ah! Cuidado, irmãos, o soldado tem uma espada. O círculo de vampiros, cada vez mais numeroso, fechou-se ao redor de Lucas. Urros nervosos cessaram o silêncio.
     Lucas baixou o capuz, revelando a cota de malha prateada e o par de olhos amarelos lampejantes. Puxou o cordão que prendia a manta, fazendo-a cair na água.
     Os vampiros retrocederam um passo.

     - Então és um abençoado! — gritou o vampiro-líder, surgindo somente agora na beira do círculo, abrindo passagem, montado no cavalo negro.
     Lucas encarou o demônio. Algo que deveria ter sido um homem de sessenta e poucos anos quando se tornara vampiro.
     - Desembainhar espadas! — berrou o bento.
     Os quatro bentos, obedientes feito cães treinados, deixaram o cerco de cavalos e expuseram-se no banco de areia, formando agora um círculo externo. Imitando Lucas, desembainharam as espadas, enquanto livravam-se das capas marrons. Suas armaduras prateadas refletiam a luz das tochas carregadas pelos soldados. Suas espadas em riste, prontas para o ataque.

     Enquanto isso, dentro do cerco, rodeado pelos soldados, Elton lembrava-se de começar a sentir aquele estranho comichão pelo corpo todo, como uma brasa queimando suas entranhas. Era como se estivesse sendo possuído por algo ruim. Um calor infernal percorrendo as veias. Chegou a pensar num ataque cardíaco e a amaldiçoar o destino por tão cruel momento. Lembrou-se de ser tomado, ser subtraído daquele lugar, ser transportado. Era como se seu espírito flutuasse, levando sua consciência para fora do corpo. Via agora a cena do pântano como se estivesse a dez metros de altura. Tinha se visto no chão! Deus do céu! Parte das lembranças pareciam surgir somente agora, real time. Passara a entender, somente agora, que contava a façanha para os enfermos, como o final daquela peleja se desenrolara. Nesse instante, assistiu seu corpo, como controlado por um mestre de marionetes, levantar-se e tirar do cavalo a capa vermelha que enrolava a espada que pertencera a bento André. Sem titubear, tinha desenrolado a capa e tomado a espada nas mãos. Atravessara o cerco de cavalos e postara-se ao lado de bento Francis, com a lâmina erguida, segurando o cabo com as duas mãos. Então, desse instante em diante, Elton passou a ver bento André, com um ferimento aberto no pescoço, de pé na areia, ao lado dos demais. Era como se seu corpo tivesse se tornado num mero vasilhame preenchido pelo espírito do bento abatido na Teodoro Sampaio. Um segundo depois, viu mais cinco novos soldados desembrulhando as espadas do meio das capas vermelhas e, quando atravessavam o cerco de cavalos, deixavam de ser soldados e a figura dos demais bentos mortos chegavam a seus olhos de espírito flutuante. Daquele instante místico em diante passaram a ser dez bentos no círculo externo do banco de areia. Mesmo assim, número insuficiente para fazer frente àquela descomunal quantidade de vampiros num ataque na floresta. Só estavam habituados a ver tantos quando os malditos organizavam-se de tempos em tempos para tentar contra os muros das fortificações. Nas florestas, o mais comum eram os bandos menores, em ataques rápidos e letais, afinal, ali era seu hábitat, era seu território.


     O vampiro-líder deixou os olhos correr sobre o grupo. Estava confiante. Não ordenaria o ataque imediatamente. Queria absorver mais daquele medo que emanava do grupo cercado pelos cavalos. Aquilo era uma delícia. O medo humano era um sub-alimento. Algo tão inebriante quanto o sangue.    
     O que poderiam aqueles dez bentos contra suas centenas de vampiros, lutando na mata, lutando na escuridão, bem distantes dos holofotes dos grandes centros? Logo que ordenasse o ataque, os vampiros voariam feito zangões para cima das tochas. Sem luz, no breu e na garoa, os humanos estariam liquidados em questão de segundos.
     - Dez bentos, irmãos! Essa é nossa noite de sorte! - Os vampiros dobraram os urros.
     Lucas avançou mais cinco passos, aproximando-se perigosamente da linha de frente dos vampiros.
     O vampiro-líder exigiu imobilidade de seu bando. Deleite. Queria o deleite.
     - Hoje é a nossa noite de sorte! — bradou Lucas, de volta. Os soldados, no cerco de cavalos, passaram a observar curiosos, levantando-se aos poucos.
     Os vampiros, sentindo-se insultados pela petulância do bento, voltaram aos urros.
     O vampiro-líder ergueu os braços, exigindo silêncio. Abriu caminho entre o bando até estar cara a cara com Lucas.
     - Que dizes, rapaz? Que tens sorte de estar aqui? — perguntou a voz rouca e sussurrada do vampiro.
     Lucas observou por um instante o líder dos vampiros. Uma criatura de baixa estatura, mas de compleição forte. Careca e pálido, trajando roupas esfarrapadas e escuras. Um bicho estranho. Lucas teve vontade de lançar sua espada à frente e aparar a cabeça da criatura. Lutou contra sua gana, do contrário colocaria tudo a perder.
     Os vampiros aglomeraram-se mais, formando um cerco cada vez mais denso. E era justamente isso que o bento buscava. Aguardou até que boa parte deles saltou das árvores.

      - Digo que hoje é tua noite de azar, vampiro do inferno.

     Calmo, dono da situação, o vampiro-líder abriu os braços.

     - És cego, bento duma figa?! Não vês que não há chance de escapada?

     - Escapada? Quem quer escapar aqui, vampiro do inferno? - O vampiro-líder soltou um riso, estupefato. Alguma coisa de nervosismo escapou de sua garganta. Sutil o suficiente para apenas o trigésimo bento, que mirava a besta nos olhos, perceber.

     Nesse segundo de distração, Lucas usou de sua velocidade e deixou a espada cruzar o ar, produzido um silvo ligeiro. A cabeça do vampiro-líder rodopiou, levando consigo os olhos vermelhos das criaturas para o alto. Lucas girou a lâmina, fazendo-a descer e cortar ao meio, dividindo em duas bandas, praticamente iguais, o corpo decapitado do vampiro.

     Os vampiros, pegos de surpresa, ficaram estáticos, assistindo o corpo do líder abrir-se lentamente em dois, caindo um pedaço de cada lado de seu cavalo.

     Lucas deu dois passos para a frente, abandonando o platô seco de areia e afundando o pé na água do pântano. Girou a espada e cravou-a no barro abaixo da água, enquanto colocava-se de joelhos diante das centenas de vampiros boquiabertos. Levaria mais um segundo para que recobrassem a atenção e finalmente fechassem o ataque sobre o insuficiente grupo de soldados e bentos... mas esse segundo precioso era o que eles não tinham. Uma vez de joelhos, Lucas estendeu o indicador e o dedo médio da mão direita de encontro à testa. Depois, os dedos foram de encontro ao ombro direito, enquanto Lucas começava uma reza ligeira, descrevendo com os dedos uma reta no ombro esquerdo, terminado por levá-los pouco acima do umbigo, completando o sinal da cruz. Em seguida, dentro desse segundo precioso, os dedos mergulharam na água do pântano... enquanto Lucas balbuciava o final da prece, deixando escapar, quase inaudível um "em nome do Pai, amém", transformando, imediatamente, toda aquela água lamacenta, em água benta.

     - Mas... mas... sabemos que um bento... um bento faz uns poucos litros de água benta por dia. — interrompeu, Carlos, procurando entender a narrativa.
      - Mas não o trigésimo bento, meu amigo. Não o bento Lucas.
 
     - Conte a ele o que aconteceu! — pediu empolgado, José Roberto, o soldado de São Joaquim.

     Elton estava tão emocionado com sua própria narrativa que, talvez, nem tivesse percebido seus olhos marejados. Continuou o impressionante relato, revelando que assim que Lucas tocou a água do pântano, transformando toda a água ao redor em água benta, o pântano começou a borbulhar e os malditos vampiros não tiveram tempo de perceber o que estava acontecendo. Foram sendo dragados pela água abençoada, derretendo e queimando, transformando-se em tochas ambulantes. Um ou outro conseguiu saltar para as árvores adjacentes e os que nelas já se encontravam trataram de fugir em retirada, sem sequer lançar um olhar para trás, 
abandonando os soldados e bentos, agora rodeados pelos gritos e pelo odor de morte causado pelos corpos que ardiam era contato com a água benta.

     Incrédulos, os soldados foram deixando o cerco de cavalos tordilhos. Os olhos vagando pela água ao redor. Alguns deles chegando à beira do banco de areia, erguendo as tochas para a luz ir mais longe, para ter certeza de que os demônios tinham ido embora. Em questão de instantes, os corpos foram sumindo no pântano, deixando para trás somente aquele odor acre pútrido no ar.

     Olharam para Lucas, ainda com um joelho afundado n'água e os dedos tocando a superfície líquida.

     Alicate interferiu na narrativa emocionada de Elton, relembrando que, nesse instante, destacou-se do grupo, olhando boquiaberto para os bentos rodeando os cavalos e para a figura de Elton e mais cinco desses "possuídos" por sabe-se lá o quê, erguendo as espadas de prata feitos bentos legítimos.
     - Fui um bento naquele instante. — soltou Elton.
     - Acho que não precisamos juntar os trinta bentos para começar a ver milagres. — repetiu, Alicate, o que dissera no banco de areia, naquela madrugada, mas agora com a voz um tanto mais cansada.

     Grupo ficou em silêncio por quase um minuto
     - Quando foi que apaguei? — perguntou Carlos.
     - Logo no começo. Na pedrada.
     - Droga. "

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